“Pelé: O Nascimento de uma Lenda”: tudo o que o filme não te mostra sobre a vida do maior jogador de todos os tempos vai muito além dos gramados. A produção da Netflix, lançada em 2016, concentra-se basicamente na conquista da Copa do Mundo de 1958 na Suécia. A narrativa simplifica uma trajetória repleta de complexidades políticas, conflitos pessoais e decisões controversas que moldaram o atleta e o homem.
Quais contextos políticos o filme deixa de explorar?
O longa praticamente ignora o Regime Militar no Brasil e a apropriação da imagem de Pelé pelo governo. Enquanto a narrativa cinematográfica celebra as vitórias, omite como a ditadura usou o astro como símbolo de propaganda. Essa relação ambígua entre o atleta e o poder constitui um dos capítulos mais sombrios de sua biografia.
A produção também não mostra as pressões políticas que cercaram a Copa de 1958. O medo de uma delegação negra representar o país na Europa era real. O filme retrata o preconceito de forma superficial, sem explorar suas raízes estruturais na sociedade brasileira da época.
Como a figura de Dondinho é romantizada?
A relação com o pai, Dondinho, é apresentada como um apoio incondicional. A biografia real, porém, revela um relacionamento mais complexo. Dondinho, ex-jogador frustrado por uma lesão, projetou no filho suas ambições. O filme suaviza a pressão psicológica que isso representou para o jovem Edson Arantes do Nascimento.
Enquanto a produção mostra cenas emocionantes de incentivo, não explora os conflitos financeiros e as discussões sobre a carreira do filho. A gestão da carreira de Pelé envolveu disputas familiares que o filme opta por não abordar, preferindo manter uma narrativa linear e heroica.
Quais conquistas esportivas foram omitidas?
O foco absoluto na Copa de 1958 deixa de lado momentos fundamentais:
- A grave lesão no joelho que quase afastou Pelé da competição
- Seis gols marcados no Campeonato Paulista de 1958
- A consolidação no Santos Futebol Clube antes da Copa
- A rivalidade com Zito e a adaptação tática no time
O filme condensa anos de desenvolvimento em poucos momentos dramáticos, criando uma linha do tempo distorcida. A construção do jogador profissional exigiu muito mais que momentos de inspiração – demandou treinos rigorosos e sacrifícios não mostrados.
Por que o racismo é tratado superficialmente?
As cenas de racismo aparecem de forma pontual, sem a profundidade necessária. Pelé enfrentou discriminação sistemática desde os tempos de Bauru até o auge no Santos. O filme mostra insultos isolados, mas não explora como o atleta precisou desenvolver mecanismos para sobreviver num ambiente hostil.
A produção também ignora como Pelé evitou posicionamentos políticos sobre raça durante boa parte da carreira. Sua postura conciliadora contrastava com a de outros atletas negros de sua geração, um aspecto crucial para entender sua trajetória e escolhas.
Quem são as figuras históricas apagadas pela narrativa?
O roteiro exclui personagens fundamentais:
- Vicente Feola, técnico da seleção em 1958
- Lula, intermediário crucial na negociação com o Santos
- Sylvio Pirillo, primeiro técnico a convocar Pelé
- Os médicos que salvaram sua carreira após lesões
O filme cria uma narrativa centrada em poucos personagens, fortalecendo o mito do “herói solitário”. Na realidade, Pelé dependeu de uma rede de apoio e de circunstâncias específicas para alcançar o sucesso.
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Como o filme simplifica a personalidade de Pelé?
A produção apresenta um Pelé unidimensional: o jovem talentoso e humilde. A complexidade de seu caráter – ambicioso, calculista e com enorme autoestima – fica de fora. Sua fama de perfeccionismo e o temperamento forte são omitidos em favor de uma imagem mais palatável.
O conflito entre a personalidade pública e privada do atleta constitui um dos aspectos mais ricos de sua história. O filme preferiu não explorar essas contradições, mantendo o foco numa jornada heroica tradicional.
O que a história real nos ensina sobre mitificação?
A comparação entre filme e realidade revela como construímos nossos ícones. Preferimos celebrar heróis sem ambiguidades a enfrentar suas complexidades humanas. A trajetória de Pelé mostra que grandes conquistas surgem de circunstâncias muito mais complexas – e interessantes – que qualquer roteiro.
Ao conhecer as versões não contadas, entendemos que a verdadeira grandeza reside na capacidade de superar não apenas adversários, mas também contradições e imperfeições. A pergunta que fica é: quantas outras histórias reais permanecem escondidas atrás das narrativas que consumimos?





