Um marco na história do esporte nacional, a primeira SAF do futebol brasileiro que mudou o rumo do esporte começou com o Botafogo de Futebol e Regatas. Em março de 2022, o tradicional clube da Zona Sul do Rio de Janeiro vendeu 90% das ações do seu futebol profissional ao empresário John Textor, dono da Eagle Football Holdings. Essa transação pioneira inaugurou uma era de profissionalização, injeção de capital estrangeiro e novos paradigmas de gestão no Brasil.
Como o Botafogo se tornou o pioneiro do modelo SAF?
A transformação do Botafogo em uma Sociedade Anônima do Futebol (SAF) foi, antes de tudo, uma necessidade de sobrevivência. O clube, fundado em 1904, acumulava dívidas históricas superiores a R$ 1 bilhão e enfrentava severas dificuldades financeiras e esportivas, incluindo um recente rebaixamento para a Série B. O então presidente, Durcesio Mello, e a diretoria enxergaram na Lei nº 14.193/2021 – a Lei das SAFs – uma rota de escape e a única chance de revitalização.
A negociação com o investidor americano John Textor não foi simples. Envolveu auditorias detalhadas, a criação de uma nova empresa (Botafogo S.A.) e a transferência dos ativos do futebol profissional para esta entidade. O clube-mãe, o Botafogo de Futebol e Regatas, manteve 10% das ações e a posse de seu patrimônio histórico, como o Estádio Nilton Santos. O acordo garantiu um investimento inicial robusto para quitar dívidas urgentes e recompor o elenco.

Quem foi o investidor por trás desta operação histórica?
A figura central foi o empresário norte-americano John Textor. Mais do que um financiador isolado, Textor trouxe ao Brasil um conceito de rede global de clubes através de sua holding, a Eagle Football. Ele já era sócio majoritário do Crystal Palace, da Inglaterra, e do RWD Molenbeek, da Bélgica. Sua visão era integrar o Botafogo a este ecossistema, permitindo a troca de conhecimento, observação de atletas e uma gestão com métricas internacionais.
Sua proposta conquistou a torcida e os conselheiros ao prometer não apenas capital, mas um projeto esportivo de longo prazo baseado em tecnologia e planejamento. Textor assumiu o controle em um momento de fragilidade extrema do clube e implementou mudanças imediatas na estrutura, incluindo a contratação de uma comissão técnica portuguesa e a adoção de ferramentas de análise de dados, algo ainda incipiente em muitos clubes brasileiros.
Quais foram os primeiros impactos no clube após a venda?
Os efeitos foram rápidos e tangíveis. Em campo, após uma campanha sólida na Série B de 2022, o Botafogo garantiu o acesso à elite do Campeonato Brasileiro. Na temporada seguinte, já sob o comando técnico de Luís Castro, o time realizou uma campanha histórica na Série A, liderando a competição de forma convincente por grande parte do certame. O investimento permitiu contratações de peso e a montagem de um elenco competitivo e jovem.
Fora das quatro linhas, a SAF trouxe estabilidade financeira. O clube quitou dívidas trabalhistas e fiscais críticas, regularizou sua situação na Receita Federal e passou a operar com um orçamento previsível e profissional. A gestão passou a ser feita com métricas de negócio, transparência nos repasses e uma estrutura corporativa, afastando-se do amadorismo das gestões associativas tradicionais. A receita de patrocínios e licenciamentos também cresceu.
Como essa pioneirismo influenciou outros clubes do Brasil?
O caso de sucesso inicial do Botafogo serviu como um efeito demonstração poderoso para todo o futebol nacional. Clubes que viviam crises financeiras crônicas passaram a enxergar o modelo SAF não como uma perda de identidade, mas como uma solução viável. O Cruzeiro foi o segundo grande clube a seguir o caminho, vendendo 90% de suas ações ao fundo Ronaldo Nazário e à XP Investimentos ainda em 2022.
Na sequência, clubes como Vasco da Gama, América-MG e Coritiba também concretizaram suas transformações em SAF, cada uma com características específicas. O movimento criou um novo mercado de investimentos no futebol brasileiro, atraindo fundos de private equity, grupos estrangeiros e ex-atletas. A Lei das SAFs mostrou-se um instrumento eficaz para separar as dívidas históricas dos clubes-mãe dos ativos produtivos do futebol. A foto abaixo mostra o anúncio da venda da SAF do Cruzeiro para Ronaldo em 2022, publicado no Instagram do Cruzeiro (@cruzeiro).
Quais são os mitos e desafios que cercam as SAFs?
Um mito comum é a crença de que a SAF significa o fim da identidade e do controle do clube. Na realidade, o modelo permite que o clube associativo, detentor de uma pequena fatia e do patrimônio histórico, preserve sua essência, enquanto a gestão futebolística opera com eficiência corporativa. Outro equívoco é achar que a injeção de capital resolve todos os problemas instantaneamente. A gestão profissional e as escolhas esportivas continuam sendo determinantes para o sucesso.
Os desafios são reais. É necessário um rígido compliance e governança para evitar conflitos de interesse, especialmente em grupos que controlam múltiplos clubes. A pressão por resultados financeiros imediatos pode entrar em conflito com ciclos esportivos de formação. Além disso, a relação com as torcidas, acostumadas a um modelo de maior participação, precisa ser constantemente gerenciada com transparência e diálogo.
O que o futuro do futebol brasileiro aprende com esse legado?
A pioneira SAF do Botafogo provou que é possível conciliar tradição e modernidade. O legado imediato é a profissionalização forçada de um mercado historicamente amador. O modelo trouxe ferramentas de gestão, planejamento estratégico e atração de investimento estrangeiro em escala antes impensável. Isso está nivelando por cima a competitividade interna e preparando os clubes para o mercado global.
A pergunta que fica é se essa transformação será capaz de gerar uma sustentabilidade de longo prazo que vá além do capital do investidor inicial. O sucesso final será medido não por um ou dois anos de glória esportiva, mas pela construção de instituições fortes, financeiramente saudáveis e competitivas por décadas. O Botafogo acendeu a fagulha; agora, o desafio do futebol brasileiro é transformá-la em uma chama permanente que ilumine um novo caminho para o esporte nacional.





