Adormeci – talvez providencialmente – para o primeiro jogo que fizemos nesta Copa do Mundo, contra a Arábia Saudita. Quando acordei, estava tudo acabado. Quase não havia resquícios visíveis da derrota, com exceção de um vizinho que olhava bucolicamente pela janela com a camisa azul-claro e branca.
Eu esperava um dia de trabalho muito difícil, cheio de problemas, então provavelmente não pensei em futebol ou algo parecido em nenhum momento. À noite, de volta para casa, me lembrei, graças aos comentários de quem vive comigo, que tínhamos jogado e perdido e lembrei-me também, e sobretudo, da pouca importância que tinha dado ao assunto ao longo do dia.
Comecei a pensar que talvez a Copa do Mundo estivesse deixando de ser um espetáculo atraente para mim, não sou fã de futebol. Porém, nas partidas que se seguiram, eu os vi carregando o mesmo estresse de sempre, exibindo gestos pomposos de alegria ou decepção dependendo da situação, reclamando ou gritando gols até ficar rouco. Por que a Arábia Saudita passou por mim?
Poderia ser o de ‘olhos que não veem coração que não sente?’ Não sei, mas sei que no não estar presente ou no ausente, como preferir, muitas coisas se perdem e que o futebol tem muito a ver com a ficção. Como ela, requer um pacto tácito entre autor e espectador que aceita convenções, diretrizes e esquemas; eles lidam com mal-entendidos. Como ela, não afeta diretamente nosso cotidiano: não nos curará se estivermos doentes, não nos tornará ricos a menos que façamos parte do negócio, não nos dará o que nos falta ou eliminará o que, sem sucesso, pretendemos abandonar.
Mas como acontece com ela, a ficção, suspenderemos a lógica habitual enquanto estivermos às suas custas, entraremos como cavalos naquilo que ela propõe, nos envolveremos com um entusiasmo temerário, como se não houvesse amanhã. E como fizermos com ela, seja ela apresentada a nós na forma de um bom romance, um grande filme ou uma série cativante, sofreremos quando tivermos que sofrer, seremos medrosos, ressentidos, sedentos de vingança, sem fim sentimentos e paixões; reflexões e perguntas. Adoraremos alguns protagonistas e detestaremos outros, simpatizaremos com alguns personagens secundários e outros simplesmente esqueceremos. Como na ficção, um contador de histórias nos conduzirá como um xamã ou guia, e nós o seguiremos com a confiança de uma criança. Se vencermos no final da história, como aconteceu nos últimos quatro jogos, fazemos da ficção a nossa realidade mais verdadeira.
*Texto traduzido do site Perfil Argentina.